Boaventura Sousa Santos[ii]
Nota del editor de OVE: En este articulo Boaventura inicia una reflexión sobre la inversión de las perspectivas, los valores y la propia percepción de la realidad en el tiempo actual, interrogándonos eb clave de futurica respecto al momento en el cual “sustituimos la causalidad por la simultaneidad, la historia por las noticias, la memoria por el silencio, el futuro por el pasado, el problema por la solución”
Quando um dia se puder caracterizar a época em que vivemos, o espanto maior será que se viveu tudo sem antes nem depois, substituindo a causalidade pela simultaneidade, a história pela notícia, a memória pelo silêncio, o futuro pelo passado, o problema pela solução. Assim, as atrocidades puderam ser atribuídas às vítimas, os agressores foram condecorados pela sua coragem na luta contra as agressões,os ladrões foram juízes, os grandes decisores políticos puderam ter uma qualidade moral minúscula quando comparada com a enormidade das consequências das suas decisões. Foi uma época de excessos vividos como carências; a velocidade foi sempre menor do que devia ser; a destruição foi sempre justifi cada pela urgência em construir. O ouro foi o fundamento de tudo, mas estava fundado numa nuvem. Todos foram empreendedores até prova em contrário, mas a prova em contrário foi proibida pelas provas a favor. Houve inadaptados, mas a inadaptação mal se distinguia da adaptação, tantos foram os campos de concentração da heterodoxia dispersos pela cidade, pelos bares, pelas discotecas, pelo Facebook. A opinião pública passou a ser igual à privada de quem tinha poder para a publicitar. O insulto tornou-se o meio mais efi caz de um ignorante ser intelectualmente igual a um sábio. Desenvolveu-se o modo de as embalagens inventarem os seus próprios produtos e de não haver produtos para além delas. Por isso, as paisagens converteram-se em pacotes turísticos e as fontes e nascentes tomaram a forma de garrafa. Mudaram os nomes às coisas para as coisas se esquecerem do que eram. Assim, desigualdade passou a chamar-se mérito; miséria, austeridade; hipocrisia, direitos humanos; guerra civil descontrolada, intervenção humanitária; guerra civil mitigada, democracia. A própria guerra passou a chamar-se paz para poderser infi nita. Também a Guernika passou a ser apenas um quadro de Picasso para não estorvar o futuro do eterno presente.
Foi uma época que começou com uma catástrofe mas que em breve conseguiu transformar catástrofes em entretenimento. Quando uma catástrofe a sério sobreveio, parecia apenas uma nova série. Todas as épocas vivem com tensões, mas esta época passou a funcionar em permanente desequilíbrio, quer ao nível colectivo, quer ao nível individual. As virtudes foram cultivadas como vícios e os vícios como virtudes. O enaltecimento das virtudes ou da qualidade moral de alguém deixou de residir em qualquer criterio de mérito próprio para passar a ser o simples refl exo do aviltamento, da degradação ou da negação das qualidades ou virtudes de outrem.
Acreditava-se que a escuridão iluminava a luz, e não o contrário. Operavam três poderes em simultâneo, nenhum deles democrático: capitalismo, colonialismo e patriarcado; servidos por vários subpoderes, religiosos, mediáticos, geracionais, étnico-culturais, regionais. Curiosamente, não sendo nenhum democrático, eram o sustentáculo da democracia-realmente-existente. Eram tão fortes que era difícil falar de qualquer deles sem incorrer na ira da censura, na diabolização da heterodoxia, na estigmatização da diferença. O capitalismo, que assentava nas trocas desiguais entre seres humanos supostamente iguais, disfarçava-se tão bem de realidade que o próprio nome caiu em desuso. Os direitos dos trabalhadores eram considerados pouco mais que pretextos para não trabalhar. O colonialismo, que assentava na discriminação contra seres humanos que apenas eram iguais de modo diferente, tinha de ser aceite como algo tão natural como a preferência estética. As supostas vítimas de racismo e de xenofobia eram sempre provocadores antes de serem vítimas. Por sua vez, o patriarcado, que assentava na dominação das mulheres e na estigmatização das orientações não heterossexuais, tinha de ser aceite como algo tão natural como uma preferência moral sufragada por quase todos. Às mulheres, homossexuais e transexuais, haveria que impor limites se elas e eles não soubessem manter-se nos seus limites.
Nunca as leis gerais e universais foram tão impunemente violadas e selectivamente aplicadas, com tanto respeito aparente pela legalidade. O primado do direito vivía em ameno convívio com o primado da ilegalidade. Era normal desconstituir as Constituições em nome delas. O extremismo mais radical foi o imobilismo e a estagnação. A voracidade das imagens e dos sons criava turbilhões estáticos. Viveram obcecados pelo tempo e pela falta de tempo. Foi uma época que conheceu a esperança mas a certa altura achou-a muito exigente e cansativa. Preferiu, em geral, a resignação. Os inconformados com tal desistência tiveram de emigrar. Foram três os destinos que tomaram: iam para fora, onde a remuneração económica da resignação era melhor e por isso se confundia com a esperança; iam para dentro, onde a esperança vivia nas ruas da indignação ou morria na violencia doméstica, na raiva silenciada das casas, das salas de espera das urgências, das prisões, e dos ansiolíticos e antidepressivos; o terceiro grupo fi cava entre dentro e fora, em espera, onde a esperança e a falta dela alternavam como as luzes nos semáforos. Pareceu estar tudo à beira da explosão, mas nunca explodiu porque foi explodindo, e quem sofria com as explosões ou estava morto, ou era pobre, subdesenvolvido, velho, atrasado, ignorante, preguiçoso, inútil, louco — em qualquer caso, descartável. Era a grande maioria, mas uma insidiosa ilusão de óptica tornava-a invisível. Foi tão grande o medo da esperança que a esperança acabou por ter medo de si própria e entregou os seus adeptos à confusão. Com o tempo, o povo transformou-se no maior problema, pelo simples facto de haver gente a mais.
A grande questão passou a ser o que fazer de tanta gente que em nada contribuía para o bem-estar dos que o mereciam. A racionalidade foi tão levada a sério que se preparou meticulosamente uma solução fi nal para os que menos produziam, ou seja, os velhos. Para não violar os códigos ambientais, sempre que não foi possível eliminá-los, foram biodegradados. O éxito desta solução fez com que depois fosse aplicada a outras populações descartáveis, tais como os imigrantes. A simultaneidade dos deuses com os humanos foi uma das conquistas mais fáceis da época. Para tal bastou comercializá-los e vendê-los nos três mercados celestiais existentes, o do futuro para além da morte, o da caridade, e o da guerra. Surgiram muitas religiões, cada uma delas parecida com os defeitos atribuídos às religiões rivais, mas todas coincidiam em serem o que mais diziam não ser: mercado de emoções. As religiões eram mercados e os mercados eram religiões.
É estranho que uma época que começou como só tendo futuro (catástrofes e atrocidades anteriores eram a prova da possibilidade de um novo futuro sem catástrofes nem atrocidades) tenha terminado como só tendo passado. Quando começou a ser doloroso pensar o futuro, o único tempo disponível era tempo passado. Como nunca nenhum grande acontecimento histórico foi previsto, também esta época terminou de modo que colheu todos de surpresa. Apesar de ser aceite que o bem comum não podia deixar de assentar no luxuoso bem-estar de poucos e no miserável mal-estar das grandes maiorias, havia quem não estivesse de acordo com tal normalidade e se rebelasse. Os inconformados dividiamse em três estratégias: tentar melhorar o que havia, tentar romper com o que havia, tentar não depender do que havia. Visto hoje, a tanta distância, era óbvio que as três estratégias deviam ser utilizadas articuladamente, ao modo da divisão de tarefas em qualquer trabalho complexo, uma espécie de divisão do trabalho do inconformismo. Mas, na época, tal não foi possível, porque os rebeldes não viam que, sendo produto da sociedade contra a qual lutavam, teriam de começar por se rebelar contra si próprios, transformando-se eles próprios antes de quererem transformar a sociedade. A sua cegueira fazia-os dividir-se a respeito do que os deveria unir e unir-se a respeito do que os devia dividir. Por isso, aconteceu o que aconteceu. O quão terrível foi está bem inscrito no modo como vamos tentando curar as feridas da carne e do espírito ao mesmo tempo que reinventamos uma e outro. Porque teimamos, depois de tudo? Porque estamos a reaprender a alimentar-nos da erva daninha que a época passada mais radicalmente tentou erradicar, recorrendo para isso aos mais potentes e destrutivos herbicidas mentais — a utopia.
[i] Publicado originalmente en la sección Debate y Sociedad del periódico Público
[ii] Doctor en Sociología del derecho por la Universidad de Yale y profesor catedrático de Sociología en la Universidad de Coímbra.1 Es director del Centro de Estudios Sociales y del Centro de Documentación 25 de Abril de esa misma universidad; además, profesor distinguido del Institute for Legal Studies de la Universidad de Wisconsin-Madison.1 Se lo considera uno de los principales intelectuales en el área de ciencias sociales, con reconocimiento internacional, con especial popularidad en Brasil, principalmente, después de su participación en varias ediciones del Foro Social Mundial en Porto Alegre. Es uno de los académicos e investigadores más importantes en el área de la sociología jurídica a nivel mundial