Boaventura de Sousa Santos. «O vírus é caótico mas não é democrático»

O mais influente sociólogo português no mundo acabou de publicar um novo livro, «O Futuro Começa Agora, da Pandemia à Utopia». Nesta obra defende que o vírus traz uma mensagem. E que é preciso aprender com as mortes que provoca, para que elas não se repitam.

Diz que foi o livro mais rápido que escreveu.

Foi o livro mais rápido que escrevi, porque foi escrito durante a pandemia para tentar responder às perplexidades que o vírus está a causar em mim e a muita gente. Pela surpresa como a pandemia surgiu e se difundiu. E surpresa também por todo o desconhecimento que havia, nomeadamente dos países mais desenvolvidos que, supostamente, têm mais capacidade científica. Verificou-se que eram os que estavam menos preparados para responder à pandemia. Ficamos na posição dos indígenas do século XVI das Américas.

Quando chegaram os portugueses e os espanhóis eram portadores do vírus da varíola, para qual os indígenas não eram imunes. A nossa diferença é que temos capacidade para tomar outras medidas, não houve essa «guerra biológica», e agora vamos ter vacinas. Mas a verdade é que o país mais desenvolvido do mundo, os Estados Unidos da América, habituado a invadir países, quando foi invadido pelo vírus não produzia as coisas mais elementares que eram máscaras, luvas e outras, como ventiladores.

Escreve a certa altura no livro, que concorda com o historiador Hobsbawm, no sentido que os séculos não começam historicamente no seu primeiro ano e acabam no centésimo, mas começam num acontecimento que abre uma era, e terminam num que a muda. No seu entender, o século XXI não começou com a crise financeira, mas com o aparecimento do coronavírus?

 

A covid-19 muda completamente as nossas formas de relacionamento e de relações sociais, muito mais do que podemos imaginar agora. Por enquanto, estamos na fase aguda da pandemia, numa altura em que só se pensa em resolver a emergência sanitária e conseguir as vacinas. Mas sabemos que o modelo de desenvolvimento que temos atualmente, que é extremamente agressivo para a natureza, destabiliza os habitats dos animais selvagens com a desflorestação da Amazónia, a contaminação dos rios, a ampliação da fronteira agrícola. Ao destabilizar esses habitats, muitos dos vírus que circulam entre os animais selvagens, sem problema nenhum, passam para os humanos que não estão imunes. O que significa que vamos entrar numa época de pandemia intermitente.

Não negligencio a importância que teve a crise financeira, há outros que mencionam, também, o derrube das Torres Gémeas, em 2001, como o princípio do século. Foram momentos importantes, mas não tiveram este impacto, dado que a pandemia atingiu rapidamente todo o mundo, colocando a humanidade no mesmo barco no que diz respeito à infeção. Embora neste navio, aqueles que vão nas cabines superiores, da classe média alta para cima, estão em melhores condições de sobreviver. O vírus é caótico, mas não é democrático. Basta ver as taxas de letalidade, nos EUA e no Brasil, em que negros e pobres são a grande percentagem das vítimas mortais da covid-19. No livro, eu comparo dois bairros da região de São Paulo, o Morumbi, de classe média alta, e o Campo Limpo, uma favela em que vive o Guilherme Bolos. Nesse dois locais a taxa de mortalidade varia entre 2% na localidade mais rica e 60% na mais pobre. Não há comparação possível.

No livro usa a metáfora de que o vírus tem uma inteligência e uma mensagem, que não só nós precisamos de traduzir, mas que até expressa uma pedagogia que temos de perceber.

Acho que ele nos está a ensinar qualquer coisa. É uma pedagogia cruel, como escrevo, ensina, matando. Mas está a dar uma lição que é uma mensagem da natureza, a dizer que se continuarmos com este modelo de desenvolvimento temos de nos preparar para mais pandemias. A vida humana do planeta é 0,01% da vida total da Terra. No entanto, desde, pelo menos, o século XIX, as alterações climáticas e outras mais graves são causadas pela ação humana. Não é a mesma coisa do que os meteoritos que destruíram os dinossauros. Se continuamos com este padrão de consumo, a vida humana está cada vez mais precária e difícil. Como digo na segunda parte do livro, o meu computador poderia durar dez anos, o meu telemóvel podia aguentar o mesmo tempo, o meu relógio poderia durar toda a vida, como duravam antes, mas nós estamos na época da obsolescência programada para maximizar o consumo e garantir os lucros dos super-ricos.

 

O vírus está-nos a ensinar que este modelo é extraordinariamente desequilibrado e põe em causa a nossa sobrevivência. No planeta, vivemos numa faixa relativamente pequena, na qual é possível vida humana. Não estou a falar dos esquimós do Polo Norte, mas das populações que estão em zonas que oscilam entre os 20 negativos, com condições, e os 40 a 45 graus positivos. O que está a acontecer é que esta franja está a diminuir em termos de habitabilidade. Há cada vez mais zonas muito frias e zonas muito mais quentes. O aquecimento global é desigual e cria desequilíbrios. A covid-19 emite um sinal de que não só vamos viver com pandemias intermitentes, como também que teremos, se continuarmos neste caminho, vagas crescentes de refugiados ambientais. É por isso que acho que é errada a metáfora inicial de que estamos numa guerra e que o vírus é o inimigo. Precisamos de vírus e bactérias para viver. O nosso inimigo é as condições em que vivemos que fazem com que estes fenómenos se tornem cada vez mais graves.

Critica o filósofo italiano Agamben pela utilização da ideia da generalização do Estado de exceção, e o filósofo esloveno Žižek pela ideia que o vírus “força” a uma passagem para formas de sociedade mais comunistas. Mas, ao mesmo tempo que critica, vai dizendo que a pandemia facilita uma pulsão autoritária e que para resolvermos esta situação temos de conseguir ter outro paradigma civilizacional.

O meu debate com Agamben tem um aspecto que não se fala muito. Se ler Pasolini, como eu li, nele já existe grande parte daquilo que diz Agamben. Ele aliás foi até actor de Pasolini, na sua juventude. A sua ideia de Estado de excepção não está desligada do facto de quando Pasolini morre ter 33 processos contra ele. A Itália daquele momento tinha, de facto, um comportamento de um Estado de exceção permanente. Mas eu, nesta pandemia, quis distinguir o comportamento do Estado português, por exemplo, e dos estados húngaro, do Azerbeijão e da Índia. Aí os governantes usaram a pandemia para aumentar, sem limites, os seus poderes. Houve estados, como o caso do Brasil, que promoveram um genocídio por ausência de políticas sanitárias.

No caso de Zizek, a minha divergência está em que eu acho que precisamos de um novo paradigma, mas não creio que seja o comunista. Sou um homem das epistemologias do sul, regiões em que a palavra comunismo não significa nada, ou pode confundir-se com o comunalismo de Narendra Modi, que ainda é pior, ou a vida comunal dos povos indígenas. Comunismo foi a solução encontrada na Europa, que temos que analisar, e que não a podemos colocar ao nível do nazismo, como faz a extrema-direita, mas que teve os seus problemas e que necessita de ser reinventado. Eu continuo a ser um socialista, mas um socialista intercultural, que tem de saber lidar com pessoas que não se declaram socialistas, mas que têm os mesmos objectivos do que eu.

Faz algum sentido falar que há um Norte ou um Sul global, quando hoje parece que o capitalismo está em todo o lado? Antigamente líamos o Corto Maltese e havia sempre uma ilha escondida em que tudo podia ser diferente, onde se podia reinventar o mundo longe do resto. Hoje isso é possível?

 

Nos meus últimos trabalhos eu distingo três formas de emergência e de soluções alternativas num tempo de transição: uma são as zonas libertadas; outra são as apropriações contra-hegemónicas, isto é começar a lutar pelos direitos humanos a sério, mas não da forma oficial que é uma espécie de política de hegemonia dominante; e a outra ir buscar às raízes, ruínas e sementes, que é o caso de algumas ideias indígenas que não estão nas Constituições da Bolívia e do Equador. São algumas formas de pensar o futuro. Há um Norte, aquele que comanda a globalização, e as três dominações que eu distingo: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. As últimas duas, embora com relativa autonomia, estão ao serviço da primeira – o capitalismo. Vê-se que na área da tecnologia dominam cinco empresas que estão nos EUA. No sector financeiro, há 25 empresas que dominam, sobretudo norte-americanas, com algumas europeias. Este Norte e Sul não é definido apenas geograficamente, mas nas relações de poder no sistema mundial.

O Norte e o Sul não está em todo o lado? Quando estamos nas cidades dos EUA invadidas por sem-abrigos, não estamos numa espécie de Sul que está no Norte? E quando estamos no Dubai, no meio dessa espécie de Disneylandia do consumo, não estamos num Norte que está no Sul?

Concordo inteiramente consigo. Digo aliás que há um Sul dentro do Norte e um Norte dentro do Sul. Em determinadas zonas de São Paulo quando se está num restaurante de luxo, estamos no Norte, mas andamos meia dúzia de passos e, de facto, estamos no Sul. Mas isso não se esgota aqui, a relação entre um Norte global e um Sul global mostra a existência de centros de poder e de relações de poder. Basta ver o que se está a passar com a chantagem que está a ser feita com as vacinas. Temos uma política de vacinas que é totalmente imperialista, o que levou António Guterres a dizer que as vacinas deviam ser um bem público mundial. Há países que estão a guardar vacinas, o que é totalmente irracional.

Se o mundo não for todo o vacinado, não interessa nada que o Norte esteja completamente vacinado, porque os executivos do Norte vão a Maputo, ou outro lugar qualquer do Sul, e podem apanhar uma nova variante do vírus para o qual não há ainda vacina. Há Norte e Sul, como há esquerda e direita. Mas temos que os redefinir, tanto epistemicamente como do ponto de vista sociológico. Não é de maneira nenhuma um determinismo geográfico, senão não entendíamos a Rússia, a China e a Coreia do Sul, nem a miséria que existe nos EUA.

Depois da pandemia pode haver uma mudança positiva de sociedade, ou é possível um cenário em que as sociedades tornam-se mais autoritárias e piores?

Sou um sociólogo crítico e luto por uma sociedade melhor. Sou objetivo mas não neutro. No meu livro coloco três cenários. O negacionismo, o não se fazer nada. Se isso acontecer vai chegar-se a esta situação que coloca de os estados tornarem-se mais repressivos, e as democracias podem não subsistir. Esta é a possibilidade que é mais provável neste momento. Depois há aquela solução a que eu chamo o gato pardo, alguma coisa muda para que tudo fique na mesma. É o que vemos com Biden e a UE, que dizem que vão fortalecer os sistemas de saúde, vão voltar ao acordo ambiental de Paris, querem fazer a transição energética e digital. Pretendem fazer alguma coisa, mas muito timidamente. A Europa nem sequer conseguiu negociar as vacinas com as multinacionais farmacêuticas. Este é o paradigma do capitalismo mais inteligente.

Se ler os editoriais do Financial Times desde abril do ano passado, lê que é preciso haver um novo «contrato social» entre outras coisas, mas é evidente que não lhes passa pela cabeça alterar o capitalismo financeiro, nem sequer perdoar as dívidas contraídas pelos países mais pobres durante a pandemia. No meu entender, essa via não vai resolver o essencial. O terceiro cenário é a minha utopia, é o que penso que devíamos fazer. No último capítulo falo de como se pode fazer a transição. Se vamos viver numa pandemia intermitente, temos de mudar muita coisa em termos do paradigma social em que vivemos.

Fuente: https://www.wort.lu/pt/sociedade/boaventura-de-sousa-santos-o-v-rus-e-ca-tico-mas-n-o-e-democr-tico-606ea4e6de135b9236bb5c0b

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Boaventura: o risco da desimaginação social

Por: Boaventura De Sousa Santos

Em tempos de crise, capital flerta com hiper individualismo. Segundo sua lógica, competição é o máximo; cabe à cultura, e à religião, aceitar a guerra de todos contra todos

Por Boaventura de Sousa Santos

O social é o conjunto de dimensões da vida coletiva que não podem ser reduzidas à existência e experiência particular dos indivíduos que compõem uma dada sociedade. Esta definição não é neutra. Define o social pela negativa, o que permite atribuir-lhe uma infinidade de atributos que variam de época para época. É, por outro lado, uma definição eurocêntrica porque pressupõe uma distinção categorial entre o social e o indivíduo, uma distinção que, longe de ser universal ou imemorial, é específica da filosofia e da cultura ocidentais, e nestas só se tornou dominante com o racionalismo, o individualismo e o antropocentrismo renascentista do século XV, os quais viriam a ter em Descartes o seu mais brilhante teorizador. Tanto é assim que a máxima expressão desta filosofia–cogito ergo sum, “penso logo existo”– não tem tradução adequada em muitas línguas e culturas não eurocêntricas. Para muitas destas culturas, a existência de um ser individual é não só problemática como absurda. É o caso das filosofias da África austral e do seu conceito fundamental de Ubuntu, que se pode traduzir por “eu sou porque tu és”, ou seja, eu não existo senão na minha relação com outros. Os africanos não precisaram esperar por Heidegger para conceber o ser como ser-com (Mitsein).

Muito esquematicamente, podemos distinguir na cultura eurocêntrica que serviu de base ao capitalismo moderno dois entendimentos extremos do social. De um lado, o entendimento reacionário, que confere total primazia ao indivíduo e o concebe como um ser ameaçado pelo social. Segundo tal lógica, os indivíduos, longe de serem iguais, são naturalmente diferentes e essas diferenças determinam hierarquias que o social deve respeitar e ratificar. Entre essas diferenças, duas são fundamentais: as diferenças de raça e as diferenças de sexo. No outro extremo está o entendimento solidarista, que confere primazia ao social e que o concebe como o conjunto de regras de sociabilidade que neutralizam as desigualdades entre os indivíduos. Entre estes dois extremos foram muitos os entendimentos intermédios, nomeadamente os entendimentos liberais (no plural), que viram no social o garante da igualdade dos indivíduos como ponto de partida, e os entendimentos socialistas (também no plural), que viram no social o garante da igualdade dos indivíduos como ponto de chegada.

Entre estes dois entendimentos, por sua vez, foram possíveis várias combinações. Com as revoluções francesa e americana os dois últimos entendimentos passaram a ser os únicos legítimos no plano ideológico. Foi com base neles que se iniciou a luta contra a escravatura e a discriminação contra as mulheres. No entanto, ao contrário do que se supõe, o entendimento reacionário da desigualdade natural-social entre os indivíduos sempre se manteve como corrente subterrânea. Até hoje. E é intrigante que assim seja depois de dois séculos de lutas contra a desigualdade e a discriminação. Houve progressos? E, se houve, por que é que os retrocessos ocorrem recorrentemente e aparentemente com tanta facilidade? Estaremos hoje numa fase de retrocesso histórico em que o entendimento socialista se desfaz no ar e o liberal parece perigosamente ameaçado pelo entendimento reacionário?

As respostas a estas perguntas dependem da consideração de vários fatores. Vou limitar-me a um deles e, por isso, assumo à partida que a minha resposta é incompleta. O que o pensamento liberal designou por sociedade moderna democrática e o pensamento marxista por sociedade moderna capitalista foi de fato uma sociedade cujo modelo de desenvolvimento econômico exigia dois tipos de exploração da força de trabalho: a exploração de seres humanos teoricamente iguais aos seus exploradores e a exploração de seres humanos inferiores ou sub-humanos. Daqui decorreram dois tipos de desvalorização do trabalho: uma desvalorização controlada, porque regulada pelo princípio da igualdade, e por isso assente em direitos supostamente universais; e uma desvalorização mais intensa porque “natural”, exercida sobre seres ontologicamente degradados, seres racializados e seres sexualizados — basicamente, negros e mulheres. O capitalismo não inventou nem o colonialismo (racismo, escravatura, trabalho forçado) nem o patriarcado (discriminação sexual) mas ressignificou-os como formas de trabalho super-desvalorizado, ou mesmo não pago ou sistematicamente roubado. Sem essa super-desvalorização do trabalho de populações tidas por inferiores não seria possível a exploração rentável da força de trabalho assalariado em que tanto liberais como marxistas se concentraram, ou seja, o capitalismo não se poderia manter e expandir de forma sustentada.

Mas, se assim foi, não terá sido apenas nos alvores do capitalismo? Em meu entender, não, e só o domínio do pensamento liberal e do pensamento marxista nos impediu de ver que desde o século XV, pelo menos, até hoje vivemos em sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais. Obviamente que ao longo dos séculos houve lutas e movimentos sociais que eliminaram algumas das formas mais selvagens de desvalorização humana, mas só o domínio daquelas duas formas de pensamento moderno foi capaz de nos criar a ilusão de que a eliminação dessa desvalorização seria progressiva e até acabaria um dia, mesmo sem o capitalismo acabar.

Ledo engano. O que aconteceu foi a substituição, real ou apenas jurídica, de alguns instrumentos de desvalorização por outros ou a deslocação do exercício da desvalorização de um campo social para outro ou de uma região do mundo para outra. Não ter isto em conta fez com que confundíssemos o fim do colonialismo histórico (de ocupação territorial por país estrangeiro) com o fim total do colonialismo, quando de facto o colonialismo continuou sob outras formas: neocolonialismo, colonialismo interno, imperialismo, racismo, xenofobia, ódio anti-imigrante e anti-refugiado, e, para espanto de muitos, a própria escravatura, como a ONU hoje reconhece. Da mesma forma que a discriminação contra as mulheres deixou de se manifestar no sufrágio eleitoral e nos direitos sociais, mas continuou sob as formas de pagamento desigual para trabalho igual, assédio sexual e violência, da doméstica ao gang rape e feminicídio. Esta cegueira analítica impediu-nos de dar relevo à composição etno-cultural da força de trabalho desde o início — por exemplo, às diferenças entre trabalhadores ingleses e irlandeses, ou [na Espanha] entre trabalhadores de Castela e da Andaluzia.

Por que razão é este argumento mais facilmente aceito hoje do que há vinte anos? Em meu entender, isso deve-se ao facto de a atual fase do capitalismo exigir hoje, talvez mais do que nunca, a super-desvalorização da força de trabalho e a submissão de vastas populações à condição de populações descartáveis, populações a quem se pode roubar o trabalho e sujeitar a trabalho forçado ou “análogo” a trabalho escravo; populações eliminadas por guerras onde só morrem civis inocentes, abandonadas à sua “sorte” em caso de acontecimentos climáticos extremos ou encarceradas, como acontece a boa parte da população jovem negra dos EUA. Estes fatos devem-se à conjugação de dois fatores epocais e, portanto, de larga duração: as revoluções eletrônicas e digitais e o domínio global do capital financeiro, o setor do capitalismo mais anti-social por criar riqueza artificial com escassíssimo recurso à força de trabalho.

A super-desvalorização da força de trabalho e o caráter descartável de vastas populações estão hoje a ser ideologicamente respaldados pela reemergência do pensamento reacionário da desigualdade natural-social entre os indivíduos, o qual sempre se manteve como corrente subterrânea da modernidade ocidental. Ele reemerge sob formas tão diferentes que facilmente se disfarçam de desvios conjunturais ou idiossincrasias sem significado. Aflora no crescimento da extrema-direita europeia e brasileira e do supremacismo branco nos EUA. Aflora na chocante virulência classista, racista, sexista e homofóbica  de organizações brasileiras de extrema-direita, algumas delas financiadas por  agências públicas e privadas norte-americanas. Aflora na generalização da precariedade do trabalho assalariado e da transformação dos direitos dos trabalhadores em privilégios ilegítimos. Aflora em sentenças judiciais que invocam a Bíblia para justificar a inferioridade das mulheres. Aflora no aumento do trabalho escravo. E aflora, pasme-se, na relegitimação do colonialismo histórico, um fenômeno que pela sua aparente novidade merece uma referência especial.

Não me refiro a políticos como o presidente Nicolas Sarkozy, que em 2007 dissertou em Dakar sobre as vantagens do colonialismo para os povos africanos, cuja tragédia seria não terem até hoje entrado plenamente na história. Refiro-me à justificação científica do colonialismo histórico e à sua invocação como solução para os “Estados falidos” do nosso tempo. Refiro-me ao artigo de Bruce Gilley, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Portland, publicado em 2017 na respeitada revista Third World Quarterly dedicada aos problemas pós-coloniais. O artigo, intitulado “The Case for Colonialism”, defende o papel histórico do colonialismo e advoga que se volte a recorrer a ele para resolver problemas que os “estados falidos” do nosso tempo não podem resolver. Mais especificamente, propõe três soluções: “recomendar modos de governação colonial; recolonizar algumas áreas; criar novas colônias de raiz.” A polêmica que o artigo suscitou foi tão grande que o autor acabou por retirar o artigo (foi retirado da versão eletrônica da revista, mas pode ser lido na versão em papel). A minha suspeita é, no entanto, que o artigo, longe de ser apenas uma prova das deficiências do sistema de avaliação “anônima” de artigos científicos, é um sintoma da época, e a polêmica que ele levantou não ficará por aqui.

O que designo por desimaginação do social é a imaginação anti-social do social. Segundo ela, numa sociedade de desigualdade natural-social entre os indivíduos, a responsabilidade coletiva pelos males da sociedade não existe. O que existe é a culpa individual daqueles que não querem ou não podem competir por aquilo que a sociedade nunca oferece e apenas concede a quem merece. Os que fracassam, em vez de apoiar-se na sociedade, devem apoiar-se nas religiões que por aí pregam a teologia da prosperidade e consolo para quem não prospera. A educação, em vez de criar a miragem da responsabilidade cidadã e da solidariedade social, deve ensinar os jovens a ser competitivos e saber que estão numa guerra de todos contra todos.

Se não é isto que queremos, é bom termos bem a noção do inimigo contra o qual temos de lutar com todas as forças democráticas, e sem complacência.

http://outraspalavras.net/autores/boaventura-o-risco-da-desimaginacao-social/

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A esquerda sem imaginação

Por Boaventura de Sousa Santos

A dominação social, política e cultural é sempre o resultado de uma distribuição desigual do poder, nos termos da qual quem não tem poder ou tem menos poder vê as suas expectativas de vida limitadas ou destruídas por quem tem mais poder. Tal limitação ou destruição manifesta-se de várias formas, da discriminação à exclusão, da marginalização à liquidação física, psíquica ou cultural, da demonização à invisibilização. Todas esta formas podem-se reduzir a uma só – opressão. Quanto mais desigual é a distribuição do poder, maior é a opressão.

As sociedades com formas duradouras de poder desigual são sociedades divididas entre opressores e oprimidos. A contradição entre estas duas categorias não é lógica, é antes dialéctica, já que as duas categorias são ambas parte da mesma unidade contraditória. Os fatores que estão na base da dominação variam de época para época. Na época moderna, digamos, desde o século XVI, os três fatores principais têm sido: capitalismo, colonialismo e patriarcado. O primeiro é originário da modernidade ocidental, enquanto os outros dois existiram antes mas foram reconfigurados pelo capitalismo. A dominação capitalista assenta na exploração do trabalho assalariado por via de relações entre seres humanos formalmente iguais. A dominação colonial assenta na relação hierárquica entre grupos humanos por uma razão supostamente natural, seja ela a raça, a casta, a religião ou a etnia. A dominação patriarcal implica outro tipo de relação de poder mas igualmente assente na inferioridade natural de um sexo ou de uma orientação sexual.

As relações entre os três modos de dominação têm variado ao longo do tempo e do espaço, mas o fato de a dominação moderna assentar nos três é uma constante. Ao contrário do que vulgarmente se pensa, a independência política das antigas colônias europeias não significou o fim do colonialismo, significou apenas a substituição de um tipo de colonialismo (o colonialismo de ocupação territorial efetiva por uma potência estrangeira) por outros tipos (colonialismo interno, neocolonialismo, imperialismo, racismo, xenofobia, etc.).Vivemos hoje em sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais. Para ter êxito, a resistência contra a dominação moderna tem de assentar em lutas simultaneamente anticapitalistas, anticoloniais e antipatriarcais. Todas as lutas têm de ter como alvo os três fatores de dominação, e não apenas um, ainda que as conjunturas possam aconselhar que incidam mais num fator que noutro.

O século XX foi dos séculos mais violentos da história, mas também se caracterizou por muitas conquistas positivas: dos direitos sociais e econômicos dos trabalhadores à libertação e independência das colônias, dos movimentos dos direitos cívicos das populações afrodescendentes nas Américas às lutas das mulheres contra a discriminação sexual. No entanto, apesar dos êxitos, os resultados não são brilhantes. Nas primeiras décadas do século XXI atravessamos mesmo um período de refluxo generalizado de muitas das conquistas dessas lutas. O capitalismo concentra a riqueza mais do que nunca e agrava a desigualdade entre países e no interior de cada país; o racismo, o neocolonialismo e as guerras imperiais assumem formas particularmente excludentes e violentas; o sexismo, apesar de todos os êxitos dos movimentos feministas, continua a causar a violência contra as mulheres com uma persistência inabalável.

Um diagnóstico correto é a condição necessária para sairmos deste aparente curto-circuito histórico. Sugiro vários componentes principais do diagnóstico. O primeiro reside em que, enquanto a dominação moderna articula sempre capitalismo com colonialismo e patriarcado, as organizações e os movimentos que vêm lutando contra ela têm sempre estado divididas, cada uma delas privilegiando um dos modos de dominação e negligenciando, ou mesmo ignorando, os outros, e cada uma delas defendendo que a sua luta e o seu modo de luta é o mais importante. Não surpreende assim que muitos partidos socialistas e comunistas, que lutaram (quando lutaram) contra a dominação capitalista, tenham sido durante muito tempo colonialistas, racistas e sexistas. Do mesmo modo, não surpreende que movimentos nacionalistas, anticoloniais e antirracistas tenham sido capitalistas ou pró-capitalistas e sexistas, e que movimentos feministas tenham sido coniventes com o racismo, o colonialismo e o capitalismo. Deste fato histórico resulta claro que os avanços serão escassos se a dominação continuar unida e a oposição a ela, desunida.

O segundo componente tem a ver com o modo como se organizaram as resistências anticapitalistas, anticolonialistas e antipatriarcais. Trabalhadores, camponeses, mulheres, escravizados, povos colonizados, povos indígenas, povos afrodescendentes, populações discriminadas pela deficiência ou pela orientação sexual recorreram a muitas formas de luta, umas violentas outras, pacíficas, umas institucionais outras, extra-institucionais. Ao longo do século passado essas múltiplas formas foram-se condensando em partidos políticos, movimentos de libertação e movimentos sociais, e, com algumas exceções, foram dando preferência à luta institucional e não violenta. O regime político que se impôs como dando a melhor resposta a estas opções foi a democracia de origem liberal, a democracia atualmente existente. Acontece que a potencialidade deste tipo de democracia para corresponder às aspirações das populações oprimidas sempre foi muito limitada e as limitações foram-se agravando em tempos mais recentes.

O tipo que mais desenvolveu essa potencialidade foi a social-democracia europeia, e o seu melhor momento (conseguido, em boa medida, à custa do colonialismo e neocolonialismo, ou seja, das relações econômicas desiguais com as colônias e as ex-colônias), está hoje sob ataque, não só na Europa, como também em todos os países que procuraram imitar o seu espirito moderadamente redistributivo para reduzir as enormes desigualdades sociais (Argentina, Brasil, Venezuela). Por todo o lado, a democracia de baixa intensidade que ainda existe está sendo cercada por forças antidemocráticas e, nalguns países, vai transitando para ditaduras atípicas, muitas vezes assentes na destruição da separação dos poderes (do Brasil à Polônia e à Turquia) ou na manipulação dos sistemas majoritários (fraude eleitoral sistemática, como no México, sistemas eleitorais que não garantem a vitória ao candidato mais votado, como nos EUA). Sabíamos que a democracia se defende mal dos antidemocratas pois, doutro modo, Hitler não teria ascendido ao poder por via de eleições. Mas note-se que, ainda que de modo fraudulento, o seu partido ostentava a palavra “socialismo” no seu nome.

Hoje, a democracia está a ser sequestrada por forças econômicas poderosas (Bancos Centrais, Fundo Monetário Internacional, agências de avaliação de crédito) não sujeitas a qualquer deliberação democrática. E as imposições podem ser legais (e legítimas?): juros de dívida pública, imposição de tratados de “livre” comércio, políticas de austeridade, rules of engagement das multinacionais, controle corporativo dos grande meios de comunicação social; e ilegais: corrupção, tráfico de influências, abuso de poder, infiltração nas organizações democráticas, incitamento à violência. A democracia é hoje subserviente dos interesses imperiais, senão mesmo um dos seus instrumentos. Para a impor destroem-se países inteiros, sejam eles o Iraque, a Líbia, a Síria, o Yemen. Está bem documentada a intervenção imperialista para desestabilizar processos democráticos dotados de algum ânimo redistributivo e animados de algum defensismo nacionalista para proteger do mercado internacional predador de recursos estratégicos, sejam eles petróleo, minérios ou, crescentemente, terra ou água. Esta desestabilização nutre-se sempre dos erros, por vezes graves, dos governos nacionais (alguns considerados progressistas) e conta com a ativa cumplicidade das oligarquias que dominaram estes países. A descaracterização da democracia é tal que já se fala hoje de pós-democracia, um novo regime político assente na conversão dos conflitos políticos em conflitos mediáticos minuciosamente geridos por técnicos de publicidade e comunicação e ultimamente apoiados pela pós-verdade mediática das fake news.

O terceiro componente do diagnóstico diz precisamente respeito aos erros dos governos nacionais. Porque erram tão frequentemente, sobretudo quando considerados progressistas? São muitos os fatores: não há alternativas anticapitalistas credíveis e as conquistas contra o colonialismo, o racismo ou o sexismo parecem depender de não interferirem com a dominação capitalista; uma vez com poder de governo, as forças progressistas comportam-se como se tivessem, além dele, o poder econômico, social e cultural que se reproduz na sociedade em geral, e com isso deixa de se reconhecer a gravidade ou mesmo a existência de antagonismo de classes, de raças e de sexos. As lutas contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado são sempre concebidas como visando eliminar os “excessos” destes modos de dominação, e não a sua fonte. Desta “autocontenção”, voluntária ou imposta, decorrem duas consequências fatais.

A primeira é tolerar ou mesmo promover um sistema de educação que promove os valores e as subjetividades que sustentam o capitalismo e as relações coloniais, racistas e sexistas. A segunda é recusar imaginar (ou ignorar quando ocorrem) formas alternativas de organizar a economia, conceber a democracia ou organizar o Estado, praticar a dignidade humana e dignificar a natureza, promover formas de sentir e de ser solidárias, substituir quantidades e gostos infinitos pela proporcionalidade, deixar de lado euforias desenvolvimentistas em benefício de limites justos e fruições comedidas, promover a diferença e a diversidade com a mesma intensidade com que se promove a horizontalidade. Ao apresentarem-se como fatais, estas duas consequências são desumanas. Pela simples razão de que ser humano é não ser ainda plenamente humano. É não ter de ser para sempre o que se é num dado contexto, tempo ou lugar.

Imagem: Edward Hooper, Pessoas ao sol (1963)

Fonte das Notícias:

http://jornalggn.com.br/noticia/a-esquerda-sem-imaginacao-por-boaventura-de-sousa-santos

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