América del Sur/Brasil/El País
Após visitar a feira e encontrar um romance gráfico em que dois heróis se beijam, prefeito mandou fiscais ao local em busca de materiais «impróprios» para crianças.
Uma cena inédita na história da Bienal do Livro do Rio de Janeiro surpreendeu editores e provocou uma reação em massa contra a tentativa de censura no Brasil: um grupo de fiscais da Secretaria Municipal de Ordem Pública percorreu, no início da tarde desta sexta, os estandes do evento para recolher livros com temas ligados à homossexualidade. Eram liderados pelo coronel Wolney Dias, ex-comandante da Polícia Militar e atual subsecretário de operações da Secretaria Municipal de Ordem Pública do Rio. E estavam ali por determinação do prefeito Marcelo Crivella, que havia visitado o evento um dia antes e se escandalizou com o romance gráfico da Marvel Vingadores, a cruzada das crianças. A obra contém a história do casal Wiccano e Hulkling. Em uma das páginas, eles se beijam. São homens. O prefeito, evangélico conservador, considerou a cena inapropriada e determinou que a obra fosse retirada das prateleiras, mas a organização recusou —e, mais tarde, a Justiça proibiu. Os livros, no entanto, desapareceram em poucas horas. Assim que a polêmica ganhou as redes, todos os exemplares que estavam disponíveis foram comprados.
«Livros assim precisam estar embalados em plástico preto lacrado e do lado de fora avisando o conteúdo», afirmou Crivella, em um vídeo publicado em seu Twitter. O prefeito argumentou a necessidade de «proteger as crianças» para que elas não tenham «acesso precoce a assuntos que não estão de acordo com suas idades«. As declarações do político, somadas à atuação dos fiscais, geraram um levante em massa de livreiros e editoras, que consideraram o ato uma grave ameaça para a liberdade de expressão. «Isso nunca havia acontecido na Bienal», disse com perplexidade ao EL PAÍS Flávio Moura, editor da Todavia, que participa da Bienal. «Não há eufemismo pro que aconteceu. É uma tentativa horrorosa de censura», completa.
Os fiscais chegaram ao Riocentro, local onde acontece o evento, por volta de meio dia. Tinham a tarefa de buscar materiais «com cenas impróprias a crianças e adolescentes» de forma aleatória nos estandes. Deveriam recolher as publicações que não estivessem de acordo com a exigência do artigo 78 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que diz: «as revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo». De acordo com a secretaria, se enquadrariam neste artigo materiais «pornográficos» ou «obscenos». Não encontraram nada «além de muitos livros», como disse o próprio coronel que liderou a fiscalização.
Após a saída dos fiscais, as editoras fizeram uma série de manifestações em repúdio ao que consideram um ato de censura em suas redes sociais. A editora Todavia repudiou a ideia de que existam livros impróprios. «A fiscalização de livros remete a uma era sombria de nossa história, e seguiremos publicando e vendendo livros que exprimem nossa visão plural de mundo e do Brasil, direito esse amparado pela Constituição, afirmou no Instagram.
E a editora Intrinseca, por sua vez, disse repudiar todo e qualquer tipo de discriminação ou censura. «Como sempre, nos posicionamos à favor da liberdade de expressão e da diversidade. Se você estiver na Bienal do Livro este ano, poderá encontrar em nosso estande vários livros com temática LGBT+», publicou no Twitter. A própria Bienal chegou a emitir uma nota no mesmo dia da visita de Crivella. Nela, destacou que o festival tem um caráter plural. «Todos são bem-vindos e estão representados. Inclusive, no próximo fim de semana, a Bienal do Livro terá três painéis para debater a literatura Trans e LGBTQA+», diz a nota do evento. A Companhia das Letras seguiu na mesma linha. “Ficamos orgulhosos com a posição da organização da Bienal do Rio em defesa da liberdade de expressão e da diversidade. Ela mostra com dignidade a vocação e vontade dos editores», afirmou Luiz Schwarcz, CEO e fundador da Companhia das Letras.
A atitude de Marcelo Crivella não é isolada. Três dias antes, o governador de São Paulo, João Dória, havia mandado recolher das escolas estaduais paulistas um material didático de Ciências para adolescentes de 13 anos que, segundo ele, fazia apologia à «ideologia de gênero». Ele se referia a uma apostila que continha o texto Sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual, com uma explicação sobre as diferenças entre os termos “transgênero”, “homossexual” e “bissexual”. No mesmo dia da determinação de Dória, o presidente Jair Bolsonaro —que já havia se envolvido em uma polêmica no período pré-eleitoral por mentir sobre livro de educação sexual que integraria o que chamou de kit gay nas escolas públicas— pediu ao Ministério da Educação para elaborar um projeto de lei contra o que chama de «ideologia de gênero» no Ensino Fundamental. Editores veem esses atos como uma grave ameaça à liberdade de expressão.
«Posturas como a do prefeito Marcelo Crivella e do governador João Doria tentam colocar a sociedade brasileira em tempos medievais, quando as pessoas não tinham a liberdade de expressar suas identidades», argumenta Luiz Schwarcz. «Eles desprezam valores fundamentais da sociedade e tentam impedir o acesso à informação séria, que habilita os jovens a entrar na fase adulta mais preparados para uma vida feliz«, acrescenta. Para o fundador da Companhia das Letras, medidas como estas, somadas à suspensão, em 21 de agosto, de um edital que daria apoio à produção de filmes LGBTQ+ por parte do Governo Federal, representam uma perigosa ascensão do clima de censura institucional no país.
O editor Flávio Moura, da Todavia, concorda. «A situação é muito alarmante, por isso muitas editoras estão se manifestando», explica. Sobre o caso da Bienal do Rio de Janeiro, ele argumenta que a prefeitura não tem poder para instituir nenhum tipo de veto ou classificação às obras. «O que aconteceu é algo completamente arbitrário, e o mais triste é que não seja um episódio isolado. Este é mais um ataque em um país que vem sofrendo com este tipo de ascensão da censura. São episódios lamentáveis e inadmissíveis que lembram o pior tempo da historia do Brasil», afirma Flávio Moura. Ele diz que os editores seguem monitorando a atuação da Secretaria Municipal de Ordem Pública do Rio de Janeiro e que continuarão publicando livros que tragam visões de mundo diversificadas. «Agora é continuar publicando obras que contribuam para mostrar que a liberdade é um valor inegociável. O papel das editoras também é este», finaliza.
No início da noite, o prefeito Marcelo Crivella publicou um novo vídeo no Twitter, em que criticou o que considera uma «controvérsia da mídia» sobre sua atitude. «O que nós fizemos foi pra defender a família. Esse assunto tem que ser tratado na família. Não pode ser induzido, seja na escola, seja em edição dos livros, seja onde for. Nós vamos sempre continuar em defesa da família», justificou. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por sua vez, discordou do argumento do prefeito e publicou, na noite desta sexta, uma liminar que impede a prefeitura de apreender livros na Bienal e de cassar o alvará do evento, outra das ameaças de Crivella. A polêmica colocou o prefeito carioca nos Trending Topics do Twitter, onde mais de 115.000 tuítes compartilharam a reação dele —e o desenho com o beijo de Wiccano e Hulkling. Milhares de brasileiros conheceram, assim, os vingadores gays da Marvel.
Em resposta a ação de Crivella, o youtuber Felipe Neto anunciou que distribuirá gratuitamente mais de 10.000 livros com temáticas LGBT durante a Bienal do Livro no Rio, neste sábado. A distribuição vai ocorrer ao meio dia, na praça da alimentação. As publicações serão envolvidos em plástico com um adesivo: «Este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas».
Fuente: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/06/politica/1567794692_253126.html