Ilka Oliva Corado: única forma que posso expressar meus sentimentos é através da escrita

 Por: Ilka Oliva Corado


Tradução do Beatriz Cannabrava, Revista Diálogos do Sul


Recordo claramente esse instante, as palavras presas na garganta sem poder sair se tornavam um remoinho, o coração batia a mil e o encantamento mal me deixava dar um passo. Saí daquele lugar estonteada e me encontrar com a luz pálida da tarde abraçando a noite; olhei ao meu redor, respirei fundo e caminhei em direção ao ponto de ônibus; estava na zona 1 da capital guatemalteca e tinha 17 anos.

O curso de Educação Física tinha aulas o dia inteiro de segunda a sexta; para que os alunos descansassem um pouco nos davam uma tarde livre por semana, para a minha turma era a quarta-feira. Então eu às vezes me punha a caminhar pela zona 1, sozinha, porque gostava de observar e parar onde quisesse; assim foi como entrei a várias igrejas pelo puro afã de respirar o aroma do incenso que eu gosto, ver as formas dos círios e suas cores e as luzes das velas agonizantes queimando-se lentamente, levando consigo mesmas nem sei quantos preces dos fiéis que as deixavam ali. O silêncio muito peculiar desses recintos, o ar frio que passa por debaixo dos bancos como uma corrente que toca os calcanhares.

Arquivo Pessoal. Norte, o 15º livro de Ilka Corado, publicado em 8 de setembro de 2019.

Eu, que não havia passado das ruas do arrabalde e dos corredores do mercado La Terminal, caminhar pela zona 1 foi um descobrimento monumental, como impressionante foi o instante em que conheci o arco do edifício dos correios; lembro de haver entrado e observado lentamente tudo. Sem falar no dia em que caminhei nas cercanias do teatro nacional, aquele grande animalzão. Digo caminhar porque não tinha dinheiro nem para comprar um chiclete. Essa limitação do dinheiro eu a havia vivido sempre com as necessidades básicas de sapato, comida, a mensalidade do colégio, mas comecei a vivê-la mais quando entrei nas livrarias e não podia comprar um livro. Ficava enamorada deles e os deixava aí nas estantes, com o coração partido. Então quando cada dois meses nos davam por parte do governo um cheque com a quantidade exata para uma passagem de ônibus diária de transporte urbano para 60 dias, eu o gastava em livros. Do banco ia diretamente às livrarias e aí deixava até o último centavo; o dinheiro da passagem eu ia ver depois como me arranjava. Esses livros foram minha companhia naqueles anos. Eu os comprava nas versões que faziam para estudantes em livros de bolso, buscava os mais baratos para poder comprar a maior quantidade possível.

Mas naquela tarde, caminhando pelos arredores da igreja de São Domingos vi em um vitrine que anunciavam a projeção de um documentário, eu nem sabia o que significava essa palavras, não sabia o que era um documentário mas entrei chamada pelo nome e pela minha eterna curiosidade. Tive tanta sorte que a entrada era gratuita e acabei de entrar e a poucos minutos começou e tudo aquilo me maravilhou. O recinto de paredes brancas como as casas dos povoados de paredes rústicas pintadas com cal, uma enorme manta branca pendurada na parede e as imagens em branco e preto que saiam de um aparelho tão pequenininho que eu não podia crer que tanta atrocidade, tanta formosura e tanta história coubessem em algo tão pequeno. Saí dali com o coração partido em mil pedaços e com um revoo de sentimentos e palavras que me formigavam nos lábios; nesse instante me dei conta e soube por primeira vez que era incapaz de me expressar. O que havia me causado ver o documentário sobre a vida de Ana Frank não pude contar a ninguém, nunca. Foi tão profundo o que senti nesse dia, chorei esse tipo de pranto que não sai em lágrimas, mas se amarra no peito.

Para esses anos a poesia que havia começado a escrever em minha adolescência estava enterrada a três metros abaixo da terra, a deixei de lado, tudo o que havia começado a escrever aos 14 anos de idade se perdeu, enterrei. Como enterrei a pintura. Até que passaram os anos e longe daquele muro onde me sentava para escrever olhando para as montanhas verde garrafa, uma madrugada a poesia voltou a mim para salvar-me a vida uma vez mais. Publiquei 15 livros desde então, longe daqueles edifícios, daquelas ruas, daquele muro. Mas, por que ter um blog e publicar livros? Meu blog é meu livro de bordo, meu diário; a única forma em que posso expressar meus sentimentos mais profundos é por meio da escrita e é minha única forma de comunicação real, pura. Poderei falar, fazer vídeos, por aí conceder alguma entrevista (as quais recuso porque não gosto delas) mas a única forma em que posso expressar a profundidade dos meus interiores é através da escrita.

Sou néscia. Meus livros refletem minha ignorância, minha insistência e meu agradecimento. Meu amor próprio no qual trabalho todos os dias porque o amor também se aprende como se aprende a andar.

São essa obstinação por dar abrigo à adolescente que vagava desorientada pelas ruas da capital. Dizer-lhe que pode criar seus próprios livros, que pode expressar por meio da poesia, dos relatos, que pode pintar os rabiscos que desejar. E que não lhe importe se outros criticam sua instabilidade emocional, devido às suas formas. Porque não há formas precisas para expressar a profundidade da alma.  Meus livros são minha forma de amá-la, de abraçá-la, de dar-lhe abrigo e calor. E são esse instante, aquele instante na porta daquele edifício, acompanhando-a de regresso à sua casa depois de haver descoberto não só a magia monumental do documentário, a Ana Frank, mas a profundidade de seus silêncios e sua inexpressão.

E através dela às adolescentes que têm medo de sonhar porque lhes disseram que os sonhos não são para os pobres, para as loucas, para as putas, para as que cheiram cola, para as mamães solteiras, nem para as que vendem nos corredores dos mercados. Nem para as que trabalham em casas de segunda a sábado e saem nos domingos para dar uma volta no parque, vagando desorientadas nas ruas empoeiradas das grande urbes, com os braços doloridos de tanto passar pano e encerar o chão. Sim, meu livros também são para elas e sei que algum dia vamos nos encontrar, nem que seja através das filhas de suas filhas, mas nesse dia nos vamos a fundir em um abraço único e cálido finalmente. Para vocês é minha letra e minha pintura que significam a insistência das alienadas às oportunidades e à realização dos sonhos.

Nota: Em 8 de setembro de 2019 publiquei meu livro Norte, meu livro número 15. Esta foto não a publiquei, mas é minha fotografia favorita dessa série tomada pela magnífica Moira Pujols. E a celebro como celebro a cada uma das minhas pinturas e cada uma das minhas crias.

Fonte:  https://cronicasdeunainquilina.com

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Ilka Oliva Corado

Escritora y poetisa. Guatemalteca, Se graduó de maestra de Educación Física para luego dedicarse al arbitraje profesional de fútbol.Con estudios de psicología en la Universidad de San Carlos de Guatemala, Es autora de tres libros: Historia de una indocumentada travesía en el desierto Sonora-Arizona; Post Frontera. Poemarios Luz de Faro y En la melodía de un fonema. Publicados en Amazon.com. Una nube pasajera que bajó a su ladera la bautizó como “inmigrante indocumentada con maestría en discriminación y racismo”. Twiter: @ilkaolivacorado, Correo: cronicasdeunainquilina@gmail.com, Blog: cronicasdeunainquilina.wordpress.com