Representantes de organizações e movimentos educacionais comentam a importância de reforçar, mais do que nunca, o cumprimento do Plano Nacional de Educação
São muitas as críticas feitas ao governo do presidente interino Michel Temer, no comando há menos de um mês. A extinção de ministérios importantes, como os da Cultura (recriado após manifestações da classe artística), das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, a falta de diversidade entre o grupo ministerial e as quedas e primeiras declarações de alguns ministros interinos são alguns dos pontos polêmicos que tem abalado o governo desde o afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff, no dia 11 de maio.
Na área de Educação não foi diferente. O fato de o ministro ter recebido representantes do projetoEscola sem Partido e ainda não ter dialogado com as entidades do setor educacional gerou muitas críticas na semana passada. Para os movimentos, entidades e organizações educacionais, também chama a atenção o fato de o governo interino não ter feito referências ou mencionado em seu plano de governo “Uma Ponte para o Futuro” e em suas falas o Plano Nacional de Educação (lei nº 13.005/2014). “O PNE é uma oportunidade incrível pra ser um compromisso perene em um momento de muita turbulência”, defende Patrícia Lacerda, gerente de Educação, Arte e Cultura do Instituto C&A.
Um Plano de Estado com participação popular
Sancionado no dia 24 de junho de 2014 pela presidenta Dilma Rousseff, o PNE foi fruto de um longo e histórico processo de construção participativa, que durou três anos e meio e delimitou 20 metas que devem ser alcançadas para a melhoria da qualidade da Educação brasileira nos próximos 10 anos. “Esse PNE tem uma marca muito singular, que foi a articulação produzida entre a sociedade civil organizada e o governo para, primeiro, a realização das Conaes (2010 e 2014), e, depois, a elaboração de um Plano que expressasse esses anseios dos diferentes movimentos sociais – do campo, da educação, da ciência, da tecnologia. Ele tem metas e estratégias que são fruto dessa interação”, diz João Ferreira de Oliveira, presidente da Anpae (Associação Nacional de Política e Administração da Educação).
No dia 17 de maio, a Anpae, junto com outras entidades nacionais de Educação, divulgou um manifesto contra as medidas tomadas pelo atual presidente interino Michel Temer e sinalizando a importância do Plano. “Quando o governo interino não se manifesta sobre o PNE, ele sinaliza que não quer se comprometer com o nível de articulação e diálogo que tinha sido construído durante a aprovação desse Plano”, esclarece.
Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, lembra que mesmo o governo da presidenta Dilma Rousseff não chegou a dar o devido reconhecimento ao PNE, ainda que o lema do seu último governo tenha sido “Brasil, pátria educadora”. “Desde que Dilma assumiu o segundo mandato até quando ela foi afastada pelo Senado, ela só mencionou o Plano em cinco discursos – quatro no período mais recente. Os governantes no Brasil não têm a compreensão que o Plano é um Plano de Estado, maior que o governo”, explica.
Por ser um Plano de Estado, o PNE deve ser a política norteadora dos planos de governo e das políticas especificas em Educação, um compromisso com a nação. Muitas de suas atuais metas já estavam presentes no primeiro Plano Nacional de Educação, que acabou não sendo encaminhado durante o seu período de duração (2001 a 2010). A preocupação dos especialistas é que, com o governo interino, o atual PNE também acabe seguindo pelo mesmo caminho, se tornando um “plano de gaveta”. “Este PNE, com dois anos, já implementou mais coisas que o anterior, que tinha dez. Isso nos deixa otimistas. Mas resta saber se o governo interino vai ter uma atuação sobre o PNE como política de estado ou se ele vai se impor e não dar continuidade ao processo”, diz Heleno Araújo, coordenador do Fórum Nacional de Educação (FNE).
Metas ameaçadas
Além de submencionar o PNE, o governo interino aponta para a Desvinculação de Receitas da União (DRU) como uma das medidas para cobrir o déficit orçamentário e contornar a crise financeira do país. A Constituição brasileira prevê que o governo federal é obrigado a gastar um mínimo do orçamento com algumas áreas, entre elas Educação e Saúde. Acabar com essas vinculações constitucionais (que garantem 18% dos impostos arrecadados pela União para a Educação) inviabilizaria ainda mais a implantação do PNE. “É uma forma de pensar a educação apenas com o viés de que é um custo, e não um investimento. A educação tem que ser prioridade não porque é um slogan de um ou outro governo, mas porque o Brasil tem sérios déficits nessa área, e não vai avançar pra lugar nenhum se ela não for priorizada”, diz Patrícia.
Os especialistas apontam o financiamento da Educação, o Sistema Nacional de Educação (SNE) e a Base Nacional Curricular Comum como algumas das metas que já estão sendo discutidas atualmente e que não podem ter seus processos de construção e implementação interrompidos pelo governo interino. “Os 10% do PIB pra Educação e o CAQi são fundamentais para viabilizar inclusive o SNE, porque a responsabilidade da Educação Infantil, do Fundamental e do Médio é sobretudo dos municípios e estados”, diz João Ferreira. “São etapas que, se não forem cumpridas dentro do prazo, há um prejuízo de todo o conjunto do PNE”, diz Heleno Araújo, coordenador do FNE.
Para Analise da Silva, representante do Fóruns de EJA do Brasil no FNE, há uma preocupação com qual visão de Educação está sendo defendida: “precisamos olhar também para a gestão democrática e quem são os sujeitos de direito da Educação para o governo interino. Michel Temer trabalha com a lógica da meritocracia e é preciso defender os direitos humanos, a laicidade da escola e as medidas que procuram emancipar as pessoas, e não manter a estrutura atual”.
Eleições municipais e os planos de educação
As desvinculações afetam também a execução dos planos municipais e estaduais de Educação, já que diminuiriam o repasse do governo federal. No caso dos municípios, por exemplo, as cobranças na Educação Infantil, com a necessidade de aumento das matrículas na creche, é um ponto sensível que precisará ser trabalhado pela gestão atual – e os candidatos, já que as eleições municipais ocorrem esse ano. “Os prefeitos e candidatos seguramente vão prometer a expansão das matrículas. Mas isso será bastante dramático, pois com a restrição de verba eles não vão poder cumprir o que prometem”, explica Daniel Cara.
Para além da questão dos recursos, o governo federal também tem um papel indutor muito forte. Um exemplo dessa força é a aprovação dos planos de educação nos estados e municípios, que foi estimulado tanto pelo prazo previsto no PNE como pelas consultorias e apoios oferecidos pelo governo federal durante esse processo. “Hoje, praticamente todos os estados e municípios têm os seus planos de educação aprovados, e esses Planos precisam estar articulados com o PNE pra avançar”, explica João.
“Se o governo federal não dá a importância devida ao PNE, ele está deixando de exercer a sua força indutora para os planos de municípios, fragilizando esses planos na ponta”, esclarece Patrícia.
Unir as forças, ocupar espaços, ir pra rua
Ainda que o processo de construção dos planos tenha sido feito de forma participativa – ou justamente por causa disso -, ele foi turbulento, cheio de divergências e enfrentamentos. Mas, por mais que ele tenha deixado a desejar em algumas bandeiras defendidas por diferentes segmentos, para muitos dos entrevistados, é preciso que os movimentos e organizações se unam em torno de pontos em comum, em prol da defesa do PNE. “Os movimentos da sociedade civil organizada precisam de alguma forma se juntar, porque agora não tem mais motivo pra aceitar que uma política seja imposta de cima pra baixo. Vamos ter que ir pra rua!”, pontua Analise da Silva.
Para que a participação popular continue ocupando esse importante espaço de interlocução com o governo, é preciso ocupar espaços e se fazer presente em todas as instâncias, por meio de mobilizações, congressos, reuniões, debates, participação em conselhos etc. “Estamos procurando ocupar todos os espaços de debate, garantindo as conquistas”, diz Sumika Freitas, do Movimento Interfóruns da Educação Infantil do Brasil (MIEIB).
Na agenda de trabalho do FNE, por exemplo, estão planejados grupos de trabalho temporários com a perspectiva de atender algumas das metas e regulamentações do PNE, como a Base Nacional Curricular Comum (com a realização de um seminário entre junho e julho), o Plano de Carreira para os profissionais de Educação e o Sistema Nacional de Educação. “Estamos com uma equipe técnica pra continuar o trabalho de criação e fortalecimento dos Fóruns como instrumento de avaliação e monitoramento permanente dos planos. O FNE é o órgão de estado que, independente de quem esteja no governo, tem que ser respeitado”, defende Heleno.
Para João Ferreira, é uma questão de alinhar a visão sobre qual Educação queremos e manter, assim, a discussão e a execução do PNE com a participação de todos: “a Educação é uma coisa ligada ao governo, mas é sobretudo da sociedade. Não se toca a educação sem o envolvimento da sociedade. Governos mais afinados, mais abertos ao diálogo com a sociedade certamente avançarão muito mais do que aqueles que assumem uma perspectiva de imposição de políticas que não vão ter aceitação da sociedade civil organizada”.
O recado vale não só para esse governo, mas também para as próximas gestões: “qualquer governo, até 2024, não pode, de forma alguma, fazer políticas que não sejam orientadas pelo Plano de Educação. Cabe à sociedade, à imprensa, aos movimentos, fazer com o que o plano ganhe a centralidade que necessita e merece”, diz Daniel.
Reportagem: Stephanie Kim Abe
Foto: Geltimarino II/Wikimedia Commons
Fonte: De Olho nos Planos