Espaços não adaptados, professores despreparados e preconceito dificultam que elas concluam o ensino superior.
No computador, ao som do Dosvox (um software sintetizador de voz voltado ao público com deficiência visual), Thaiane Martins digita. Marca entrevistas, prepara pautas, se prepara. A moça de voz terna, que não abriu mão do curso superior, traz consigo a certeza de que a disputa é grande e as barreiras são muitas: não vai ser fácil entrar no mercado. “Deixei currículo em muitas empresas. Nenhuma me chamou, nem mesmo pra testes. Por isso, sempre me pergunto: ‘será que não me contratam pela competitividade do curso, ou pelo fato de eu ser deficiente?’. Eu sigo com essa dúvida”.
Esguia, de cabelos escuros e pulsos delicados, é estudante do quinto semestre do curso Jornalismo na Universidade Federal do Pará (UFPA). Deficiente visual de nascença, a moça foi diagnosticada com retinopatia da prematuridade nos primeiros meses de vida. A patologia, descrita como o crescimento desorganizado dos vasos sanguíneos que suprem a retina, atinge principalmente bebês prematuros que nascem abaixo do peso. Manifesta-se em diferentes níveis de gravidade; no mais extremo, pode gerar deslocamento da retina e ocasionar cegueira. Foi seu caso.
Ocultas pela voz meiga, as atribulações e asperezas da trajetória de Thaiane até o nível superior não são diferentes das ocorridas com tantas Pessoas com Deficiência (PCDs) no Brasil. Desde a infância, o espectro do preconceito se fez presente na vida da jovem. No Ensino Fundamental, os colegas de classe se recusavam a fazer atividades escolares com ela. No Médio, os alunos a excluíam das equipes de trabalho. Essa discriminação, aliada a fatores como técnicas educacionais não-inclusivas, arquiteturas escolares inacessíveis e despreparo e desinteresse docente, resultam no alarmante dado divulgado no Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): Dos 41,6 milhões de deficientes acima de 15 anos – o equivalente a cerca de 22% da população nacional –, 61% não tinham instrução, ou possuíam somente o ensino fundamental incompleto.
Diante desses números, não posso deixar de me lembrar do livro Ação Cultural para a Liberdade, de Paulo Freire, no qual o autor escreve que “o analfabetismo nem é uma ‘chaga’, nem uma ‘erva daninha’ a ser erradicada (…), mas uma das expressões concretas de uma realidade social injusta”.
Creio que por isso foi árdua a busca por mulheres com deficiência que tivessem concluído ou cursassem o nível superior. Nas idas e vindas, encontramos algumas histórias dentre esse público reduzido e tão à margem da escolaridade. Talvez por timidez ou por ainda não terem concluído a graduação, algumas personagens confirmavam entrevistas e depois recuavam.
Como afirma a estudante de pós-graduação Hellen Raiol, “nós, pessoas com deficiência, mulheres com deficiência, precisamos provar constantemente,diariamente, que somos capazes”.
Ela começou a ter perdas visuais aos 16 anos. No furor de sua juventude, precisou aprender um novo jeito de olhar o mundo. Por ter nascido com retinose pigmentar, que se caracteriza por ser um conjunto de doenças oculares hereditárias que causam degeneração na retina e levam a perda visual gradativa, a mulher de cabelos negros como ébano hoje é considerada baixa visão – isto é, o declínio visual severo que não pode ser corrigido por tratamento, cirurgias ou óculos convencionais.
“Mas eu precisava seguir. Porque ser deficiente significa que vamos ter dificuldades e limitações, como qualquer outra pessoa! E que não é por isso que devemos recuar e não ir atrás de nossos sonhos”, confidencia.
E ela não só sonhou: realizou. Como sempre gostou de lidar com público e se identificava com a luta pela garantia de direitos e igualdade de oportunidade, Hellen ingressou em 2010 no curso de Serviço Social. No início da graduação, contudo, já precisou enfrentar o olhar de desconfiança de alguns colegas de turma.
“Percebi que existia certo distanciamento, uma resistência em se relacionar comigo. E que alguns deles achavam que eu, por ter deficiência visual, não raciocinava, não tinha opinião própria. Por essa ideia distorcida, muitas vezes, em trabalhos em grupo, meus colegas queriam me isentar da responsabilidade de realizar a tarefa. As dificuldades enfrentadas, contudo, não se restringiram ao preconceito inicial de alguns alunos da sala. Entre os desafios com que se deparou, destacam-se as barreiras atitudinais que dificultavam sua compreensão dos conteúdos estudados. “Por exemplo: em algumas aulas, os professores acrescentavam imagens aos slides, imagens importantes para entender o assunto e que eu não podia ter acesso por não conseguir enxergá-las”, ela cita, uma nota de aborrecimento tingindo sua voz. “Há muito ainda a ser trabalhado nas universidades, os docentes não receberam o devido preparo para o ensino de pessoas com deficiência. Em toda minha graduação, apenas um professor teve esse olhar inclusivo”.
Os demais professores, ou não a incluíam ou dificultavam sua participação. “Mas o mais grave foi quando um deles disse que achava que eu deveria ficar em uma “classe especial e não com os demais alunos”.
Despreparo e falta de informação
Na contramão, o francês Jean-François Deluchey, residente no Brasil há 12 anos, foi o professor que ofereceu formas de inclusão para Hellen em suas aulas. Ele atribui o despreparo docente à falta de informação a respeito da causa das pessoas com deficiência. Admite ainda que se não fosse por Hellen, não saberia que existem recursos pedagógicos disponíveis a esse público. “Eu entendo que meus colegas se sintam desnorteados e muitas vezes até desconfortáveis com a própria falta de conhecimento. Mas acho que é preciso levar em conta a diversidade social e a inclusão dos deficientes no sistema de ensino. É função nossa, quanto docentes, nos informarmos e nos adequarmos aos serviços técnicos”.
E o professor acredita que uma das formas de alcançar acessibilidade na educação seria o corpo diretivo disponibilizar tablets gratuitamente aos alunos com deficiência visual, a partir do primeiro semestre de curso. Além disso, os docentes ficariam responsáveis pela digitalização sistemática dos conteúdos trabalhados em sala.
“Eles foram aprendendo comigo”
A jornada de Thaiane na graduação é um pouco diferente da de Hellen. Com a aprovação no vestibular, encerrou o capítulo da discriminação nas salas de aula. “Na universidade, não enfrentei nenhum preconceito”, assegura. “Meus colegas de turma da UFPA só ficaram curiosos, querendo saber como era o mundo pra mim. Mas atribuo isso à sorte, porque já ouvi muitos relatos de outros deficientes que sofreram preconceito no ensino superior”.
Quando pergunto se a universidade estava acessível a ela, a resposta imediata é não. “Eu fui a primeira aluna cega do curso de Comunicação da UFPA, e a faculdade não estava nem um pouco preparada. Eles foram aprendendo comigo, se esforçando pra suprir todas as necessidades”.
E é para atender às demandas, garantir a permanência e acesso pleno das PCDs aos institutos federais de ensino superior, que desde 2005 o Ministério da Educação (MEC) implementa o Programa Incluir, cujo objetivo é assegurar a integração dos deficientes ao âmbito acadêmico através da eliminação de barreiras comportamentais, pedagógicas, arquitetônicas e comunicacionais. Entre as ações do programa está o incentivo a criação de núcleos de acessibilidade.
“Na UFPA, o Núcleo de Inclusão Social, também chamado de NIS, se pauta nessas diretrizes”, explica a coordenadora do projeto, Rosilene Prado. Criado em 2012 pela Pró-Reitoria de Ensino e Graduação (PROEG), com o intuito de executar a Política Institucional de Inclusão, o NIS atende, atualmente, 55 universitários com deficiências diversas.
Entre as atividades desenvolvidas, estão o apoio ao aluno deficiente visual com a transcrição de materiais para o sistema Braille e grafia ampliada, disponibilização de intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras) para estudantes com deficiência auditiva, entre outros.
“Também conversamos com os alunos com necessidades especiais, para saber do que eles verdadeiramente precisam e prestamos orientações aos professores, para que ministrem as aulas de forma a incluir toda a classe”, afirmou a coordenadora de cabelos curtos e negros.
Thaiane foi uma das estudantes atendidas pelo Núcleo. Ela me conta que ao ingressar na faculdade, duas especialistas da área de Educação Especial a procuraram para saber com quais técnicas de ensino inclusivo estava familiarizada. “Braille, tecnologias assistivas como Dosvox e outros programas sintetizadores de voz”, e de posse dessa informação, conversar sobre adaptações de aulas com o corpo docente do curso de jornalismo.
“Perguntaram também se eu gostaria que realizassem dinâmicas com a minha turma, se eu me sentiria à vontade com isso Como eu disse que tudo bem, elas vendaram alguns colegas meus, para mostrar a eles como era a minha realidade. Também ensinaram como conduzir um deficiente visual”, conta. Além disso, os professores passaram a digitalizar e enviar antecipadamente os materiais abordados em sala.
De acordo com a deficiente visual, a estrutura arquitetônica da UFPA é outra questão para PCDs, uma situação que compromete a mobilidade livre e autônoma desses estudantes. Mas independente dos tropeços na jornada, ela segue trilhando os caminhos da graduação. Já nos primeiros semestres, ingressou voluntariamente na equipe da Rádio Web da UFPA. Pouco tempo depois, tornou-se bolsista do veículo. Na mídia, ela desempenha a função de repórter-produtora Nos próximos anos, a futura jornalista espera que a recém-descoberta afinidade com rádio e TV se consolide: são os veículos em que deseja exercer a profissão.
Fonte: Pérola de Souza/Revista AzMina