Fonte Intervozes — publicado 06/04/2016
Relatório final de Comissão da Câmara aumenta vigilância, promove censura, ataca liberdades individuais e auto-organização de movimentos e minorias
Por Iara Moura*
No Brasil atual, onde a crise política toma grandes proporções e faz com que o debate se espraie para além do parlamento e dos demais centros de poder, controlar a internet aparece como uma resposta dos grupos que se sentem ameaçados pela circulação de informações.
É neste contexto que deve ser votado, na quinta-feira 7, o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Crimes Cibernéticos da Câmara, formado por um conjunto de oito projetos de lei que, em suma, têm dois objetivos: vigiar e punir (propositalmente citamos Michel Foucault) condutas consideradas ilegais praticadas por usuários/as das redes.
Diferente do que o/a leitor/a apressado/a possa inferir pelo nome da CPI, a ideia principal dos projetos não é resguardar os/as internautas de ameaças à segurança. Pelo contrário, os projetos se revelam eles mesmos uma ameaça aos direitos já garantidos em legislações anteriores, entre elas principalmente o Marco Civil da Internet que é considerado uma das legislações mais avançadas do mundo.
Encabeçam esta ofensiva os deputados federais responsáveis pelo relatório: Espiridião Amin (PP/SC), relator; os subrelatores Sandro Alex (PSD/PR), Rafael Motta (PSD/RN), Daniel Coelho (PSDB/PE) e Rodrigo Martins (PSB/PI), e a presidenta da CPI Mariana Carvalho (PSDB/RO).
Ademais apresentar os riscos prementes colocados pelos projetos defendidos no relatório, queremos aqui desconstruir o mito em torno da ideia de “cibercrimes”, útil, em última medida, para a criação de um ambiente virtual altamente controlado e adverso à liberdade de expressão e à defesa dos direitos humanos.
Em primeiro lugar, cumpre dizer que o Código Civil, além de leis recentes contra crimes cometidos no ambiente virtual e da própria Constituição Federal, já oferece um robusto arcabouço legal para punir delitos cometidos dentro e fora do ambiente virtual.
Assim, para além de uma ameaça aos direitos individuais e coletivos, a proposta que será apresentada pela citada CPI é uma ameaça à democracia. A CPI quer transformar em lei as seguintes propostas, reproduzidas abaixo de nota contrária ao relatório lançada pela sociedade civil:
1) A permissão para que autoridades policiais acessem endereços de IP sem necessidade de mandado judicial;
2) A obrigação de que, ao serem notificados, provedores de acesso à Internet removam conteúdos considerados prejudiciais à honra em até 48h sob pena de responsabilização civil e criminal.
3) A obrigação de que provedores de acesso monitorem conteúdos para impedir o compartilhamento futuro de conteúdos previamente notificados como prejudiciais à honra ou de materiais relacionados;
4) A expansão da definição do crime de invasão de dispositivo eletrônico para incluir situações em que não houve danos comprovados e independentemente da intenção;
5) A permissão para que juízes bloqueiem aplicações e serviços no nível da infraestrutura da Internet, o que traz consequências negativas para a liberdade de expressão.
Internet livre sob ameaça
A internet já nasceu com vocação e essência democrática. Está no seu DNA a criação e o compartilhamento de ideias e ações. É natural então, que essa arena pública tenha sido por diversas vezes ocupada por movimentos sociais, trabalhadores/as, defensores/as de direitos humanos, população negra, mulheres, imigrantes, LGBTs e demais minorias sociais, como espaço de organização, empoderamento e ação política. É essa, enfim, a “ameaça” que a CPI dos cibercrimes teme.
De trabalhadores/as de fábrica têxtil no Egito a operários/as chineses/as em fábricas da Honda e a funcionários públicos de Wisconsin: as redes vêm desempenhando um papel fundamental nos movimentos contra-hegemônicos.
Um relatório elaborado por Hossam El-Hamalawy, jornalista e ativista, mostra como o telefone celular e as redes de computadores tiveram papel fundamental na construção do movimento operário no Egito. De fato, foram parte da fundação do movimento de massas que tirou o ditador Hosni Mubarak do poder em 2011. Ele governava o Egito desde 1981.
A chamada Primavera Árabe (no norte da África), o Movimento 15M (na Espanha) e os movimentos “Ocuppy” (em diversos países, especialmente no Estados Unidos) também foram baseados na troca de informações e articulações políticas mediadas pela internet. Teriam tido essas iniciativas os impactos que tiveram sem o livre uso da internet?
No caso dos/as refugiados e/ou imigrantes recém-chegados à Europa e que se utilizam das redes sociais e aplicativos para se comunicar com parentes e amigos, a ameaça também é premente.
Tomadas em resumo, as medidas listadas apontam um alvo de censura e punitivismo para todos os/as usuários/as, mas representam uma ameaça contundente para as minorias políticas. No Brasil, onde a força policial é réu em diversas ações que denunciam violações de direitos humanos e o genocídio da juventude pobre e negra, as propostas contidas no relatório viriam a ampliar o poder do aparato repressivo.
Medidas parecidas de uso da Tecnologias de Comunicação e Informação (TICs) e da internet para aumentar o vigilantismo já foram tomadas em outros países com resultados catastróficos para as liberdades individuais, a privacidade e o livre exercício do jornalismo, para citar alguns exemplos.
No fim do ano passado, o Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro, organização formada por jovens negros de favelas, lançou o aplicativo Nós por Nós, voltado para denúncias de violações de direitos cometidas por policiais.
A ação foi protagonizada pelos jovens e teve sua importância reconhecida pelo Ministério Público. Que tipo de ameaça, esta e outras iniciativas em defesa de direitos encontrariam se o conteúdo do relatório da CPI dos crimes cibernéticos fosse aprovado? Os exemplos mundiais nos fazem capazes de arriscar previsões sólidas.
Na Síria, o combate ao anonimato com o cadastro obrigatório de IPs (espécie de RG do usuário) tem culminado na perseguição, criminalização e silenciamento de diversos/as cidadãos/as que se utilizam da rede para denunciar os horrores da guerra e da intolerância religiosa que assolam o país.
Na Coreia do Norte, Irã, Turquia e China, medidas parecidas foram tomadas e resultaram em situações extremas de cerceamento da liberdade de expressão e de criminalização de opositores a governos e de movimentos étnicos, religiosos, dentre outros.
Afinal, a quem interessa controlar as informações que circulam na internet? Quem seriam os principais beneficiários de uma legislação punitivista que imputasse aos usuários (ou internautas) penas severas para restringir a livre circulação de ideias na rede?
Não é muito difícil chegar a uma resposta a essas questões. Ao longo da história, sempre interessou ao status quo controlar o debate de ideias para excluir contrapontos ao projeto de poder instalado.
Todos/as aqueles/as que atuam na defesa do direito à comunicação, dos direitos humanos, da liberdade de expressão e da democracia, devem estar alerta para se contrapor à ameaça real que estas medidas colocam e defender a internet como espaço plural, participativo e livre para o acesso e circulação de ideias como já ressalta, vale lembrar, o Marco Civil da Internet.
*Iara Moura é jornalista e integra a coordenação do Intervozes.