Em 6 de abril de 2001, país começava a desativar seus tristes manicômios. Ao resgatar histórias de pacientes com transtornos mentais, nossas matérias ensaiam um balanço desta transformação
Por Lígia Morais
Atenção em Preto e Branco
Pitico não consegue sonhar, acha que é por causa da medicação que tomava antes. Ele passou 13 anos entre os muros de um hospital e hoje mora numa residência terapêutica em Sorocaba. Um amigo o leva na garupa para andar de moto, Pitico usa o capacete e um blusão de couro para rodar pelo centro da cidade. “É uma liberdade que não tem preço”, diz sorrindo. Wilson Abramusviz “Pitico” sabe ler, escrever, conversar, entrar, sair, só não consegue sonhar. O documentário “A chave da nossa casa”, lançado pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo em 2015, trata da desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos, isto é, da mudança dos hospitais para modelos que promovem a reintegração social, como é o caso das residências terapêuticas. Em vídeo, também é contada a história de Valdeci.
Depois de 26 anos morando num hospital, é ela mesma quem decide o horário em que vai dormir: à meia-noite. Valdeci de Carvalho mora com mais sete pessoas numa residência em Santo Amaro, todos ex-internos de hospitais psiquiátricos. Ela os chama de família, vão à praia, ao sítio, ao shopping. “A gente se distrai muito, se diverte muito, a gente curte muito a vida”, ela conta. No documentário, faz um apelo, pede para que tirem todos os outros pacientes de hospitais o mais rápido possível, para que possam melhorar e poder sentir o que é liberdade – “Quem estiver ouvindo essa gravação, o ministro da saúde, o governador, que abra residência pra poder morar, porque não tem como morar num hospital; hospital não foi feito pra morar não”. Ela termina: “Esse é meu recado, Valdeci Elias de Carvalho. Obrigado”.
Em 2008, eram 6.349 pacientes internados em hospitais psiquiátricos no estado paulista, a maioria já possuía condições de começar o processo de ressocialização. Ainda assim, a falta de uma rede alternativa consolidada os impedia de continuar o tratamento fora das instituições. Seis anos depois, o Censo Psicossocial de 2014 mostrou que 4.439 pessoas ainda estavam morando em hospitais. “Esse número atual de moradores já sinaliza as resistências e dificuldades em cumprir o que está assegurado por lei desde 2001 e preconizado pela política de saúde mental com a sua implantação”, está escrito no relatório. Aponta-se a falta de investimentos nos serviços extra-hospitalares de base comunitária e a resistência ainda grande da sociedade em incluir os doentes mentais nas cidades.
Mantiveram-se 53 hospitais psiquiátricos no estado de São Paulo. “Se a lei se consolidou e se legitimou, através da implantação real de boa parte dos seus mandamentos, o embate ideológico e de modelos de atenção persiste e a agenda política de defesa dos princípios da lei permanece atual”, comenta Pedro Delgado em artigo publicado em 2011, na efeméride dos dez anos da Lei 10.216. Pedro, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, é irmão do deputado Paulo Delgado, que propusera o projeto legislativo da Reforma Psiquiátrica no final da década de 1980.
“130 leitos do passado”
Em Franco da Rocha, os corredores vazios e prédios interditados do Juquery nem parecem já ter abrigado mais de 14 mil pacientes. Entre 1995 e 2003, muitos deles passaram pelo processo de desinternação. Pouco antes da aprovação da Lei 10.216, que institucionaliza a reforma psiquiátrica, 2.500 pessoas ainda moravam nas colônias do hospital centenário. Pier Paolo Pizzolato, Diretor Técnico 1 do Complexo Hospitalar do Juquery, explica que a desinstitucionalização foi demorada pois foi necessária a revisão dos prontuários de todos os pacientes. Também se prolongou por muitos deles não possuírem documentos de registro, o que dificultava a reativação do vínculo familiar. Em 2015, eram 130 leitos ocupados.
“O paciente crônico que está aqui ainda é paciente que não tem família, que não tem referência do Estado, que não tem capacidade suficiente para estar numa residência terapêutica”, comenta Paolo. Eles têm uma internação média de mais de 40 anos e, por isso, o tratamento hoje é mais ligado a doenças causadas pela velhice do que aos próprios problemas psiquiátricos. Raramente eles têm algum surto, mas tratam da diabetes, dos problemas do coração, dos de locomoção. Quando um desses pacientes vem a falecer, o leito é extinto e não pode mais haver internações.
Os diálogos sobre a criação de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) na cidade começaram há pouco e, na região de Franco da Rocha, também não há residências terapêuticas. “É um gargalo físico”, aponta Pizolatto, “não é todo mundo que quer ter um CAPS dentro do próprio município”. Ele é arquiteto de formação e foi um dos responsáveis pelo projeto de transformar o antigo asilo de crônicos em um hospital de retaguarda. Ele vê como futuro para o complexo a vocação de reabilitação psíquica e física. “Enquanto isso não acontece, o Juquery fica nessa situação onde já tem alguns serviços de ponta e ainda convive com 130 leitos do passado, que a gente vai aos poucos fechando”, comenta.
Em 2014, houve licitação para a reforma e o restauro de parte do conjunto do hospital, mas uma questão burocrática entre as empresas concorrentes fez com que o processo parasse. No ano seguinte, o financiamento foi recolhido e, com a crise econômica, o projeto terá que ser alterado para se adequar ao novo orçamento. Serão construídos, num projeto piloto, 40 leitos – que futuramente pretende-se expandir para 105. Paolo ainda não fala de prazos, mas afirma que existe tanto a vontade técnica como a vontade política, duas questões essenciais para que se aconteçam as mudanças.
“Lutei por uma pátria livre”
O lema no brasão da cidade de Sorocaba está fixado sob a mesa dos vereadores. Celso Sanches não pôde comparecer à Câmara Municipal na tarde do dia 28 de novembro de 2015. Lá seria realizado um debatesobre saúde mental, direitos humanos e o processo de desinstitucionalização em Sorocaba. Mandou uma carta, então, para ser lida por um representante do Movimento Antimanicomial “Loucos pelo Mundo”, do qual também participa ao lado do filho Denis. Celso escreve que o filho esteve internado no hospital Teixeira Lima, no Vera Cruz e no Jardim das Acácias. “Ele sofreu nesses hospitais todo tipo de violência, principalmente no Teixeira Lima e no Vera Cruz; Denis Roberto Sanches foi agredido pelos enfermeiros, foi abusado sexualmente e foi ameaçado de morte, se ele falasse para o pai”, conta. Pelas ameaças psicológicas e físicas, Celso pede aos políticos que tomem providências.
Denis também quer que se investiguem os casos de violência. Em pausas longas, se emociona ao falar que tinha medo das ameaças. Lembra que o amarravam no Vera Cruz, pelos braços e pernas. Faz um apelo: “Eu acho que eu não sou louco; que não precisa de hospital nenhum pra internar, tem que fechar o hospital”.
Entre 2004 e julho de 2011, ocorreram 825 mortes de pacientes do SUS nos hospitais da região de Sorocaba, o que corresponderia a uma morte a cada três dias. A concentração de leitos de longa permanência e as denúncias de maus tratos nos hospitais levaram à formalização de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em 2012, que previa a desinternação de pacientes de sete instituições psiquiátricas e a sua transferência para residências terapêuticas (RTs) ou CAPS. Em 2008, a região compunha o maior polo manicomial do país, com mais de dois mil pacientes. Em 2014, do total de 4.439 moradores de hospitais psiquiátricos no estado, 1.600 estavam em Sorocaba.
A assinatura de Jefferson Aparecido Dias é a primeira que aparece no documento do TAC de Sorocaba. Foi designado pela Procuradoria Geral da República para tratar do caso. “O TAC tem a finalidade de fortalecer e consolidar a rede protetiva aos pacientes e garantir tratamento mais humano e eficaz”, ele explica. Foram criadas equipes multidisciplinares, com profissionais do município, do estado e da União. Em até três anos – com possibilidade de se estender por mais um; então, até 2016 – todos os pacientes atendidos pelos hospitais devem ser transferidos para a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). “O problema é que apesar da lei, a RAPS não foi criada, razão pela qual não existem estabelecimentos aptos a receberem os usuários da saúde mental”, aponta Jefferson. Os pacientes são então mantidos nos hospitais psiquiátricos.
Denúncias e luta
“Categoria enfrentamento à tortura: recebe o prêmio o Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba – FLAMAS“. No Palácio do Planalto, aplausos seguem o anúncio do Prêmio Direitos Humanos, em 2011, e não se escuta mais o que diz o apresentador no microfone. A Presidenta da República cumprimenta um dos representantes do FLAMAS, movimento que fora criado dois anos antes e responsável por denúncias de hospitais psiquiátricos na cidade do interior do estado de São Paulo.
Em audiência pública, na manhã do dia 28 de novembro de 2015, Francisco Fernandes, secretário de Saúde de Sorocaba, levanta os números da desinstitucionalização. De 2010 a 2015, o número de leitos SUS em Sorocaba e na região caiu de 2.778 para 1.853. Três das quatro instituições psiquiátricas da cidade foram fechadas. O Vera Cruz, porém, continuou funcionando, como espaço para receber egressos de outros hospitais do estado. Em novembro de 2015, 470 pacientes ainda estavam internados no Hospital, quase a sua capacidade máxima – que é de 512 pessoas. Entre 2010 e 2015, foram fechados 42 leitos do Vera Cruz. Apesar da aprovação do TAC em 2012, o FLAMAS não vê perspectiva de cumprimento do termo pela Prefeitura de Sorocaba no prazo estabelecido.
No final da audiência, Mirsa Dellosi, coordenadora de Saúde Mental da cidade, pede a palavra para comentar um dos dados levantados pelo secretário. Ela se diz emocionada por, nos últimos três anos, o número de altas de pacientes para a família ou residência terapêutica ser três vezes maior que o número de óbitos – o que seria um momento histórico, já que o número de óbitos de hospitais psiquiátricos costuma ser maior que o de altas. Apesar de alguns avanços, representantes do Fórum de Luta Antimanicomial ainda veem problemas no processo de desinstitucionalização – comentam na audiência que a assinatura do TAC, por exemplo, não contemplou a Defensoria Pública, o Conselho Regional de Psicologia e os movimentos sociais da região.
O processo de desinstitucionalização em Sorocaba, segundo o FLAMAS, tem se transformado num processo de desinternação. Dizem os representantes: “para a Prefeitura, o cumprimento do TAC seria retirar as pessoas dos hospitais psiquiátricos, sem levar em consideração o reestabelecimento social dessas pessoas, sem trabalhar autonomia ou questões que possam facilitar a integração na sociedade”. Entra, além dessa, a questão dos administradores dos novos modelos de assistência. O FLAMAS aponta que são os mesmo que gerenciavam os espaços de asilamento e hipermedicalização dos antigos hospitais psiquiátricos. A RAPS de Sorocaba, por ser formada por organizações sociais e CAPS ligados aos mesmos grupos denunciados pelos militantes, acaba reproduzindo práticas manicomiais.
Afirmam ainda que a atenção básica da cidade não tem capacidade para realizar um atendimento cotidiano e que a assistência 24h dos CAPS e os leitos em hospitais gerais não são suficientes. “A Rede de Atenção Psicossocial em Sorocaba não atende às necessidades e à complexidade do cuidado com pessoas que saíram de manicômios depois de anos ou décadas de internação, negligência e maus-tratos”, dizem.
Em 2014, o processo de desinternação havia se intensificado com a contratação de trabalhadores comprometidos com a Reforma Psiquiátrica, mas com a subsequente demissão em massa desses funcionários, o processo voltou à lentidão. Com as mudanças na gestão do processo de desinstitucionalização, os militantes da luta antimanicomial de Sorocaba não têm mais acesso ao Vera Cruz. “Sem transparência, fica mais complicado acompanhar e fiscalizar o que acontece, para cumprir o papel do movimento social: tencionar por uma ampliação sempre maior e mais inclusiva dos Direitos Humanos e denunciar abusos e violações de direitos”, comentam.
Os integrantes do FLAMAS sofrem ameaças constantes de criminalização e perseguição por causa das denúncias que fazem. Com a transparência que falta agora ao processo, “o FLAMAS enfrenta o desafio de continuar atuando contra uma estrutura manicomial que se reforçou após as demissões dos profissionais mais críticos e dos gestores mais alinhados com a Reforma Psiquiátrica”, afirmam. Também preocupam as nomeações de Marcelo Castro e Valencius Wurch para cargos de coordenação no Ministério da Saúde. Em 2016, os militantes de Sorocaba começaram o ano participando doLoucupaBrasília, manifestação na capital do país que pedia a exoneração de Wurch.
Problemas na alternativa
Os problemas na consolidação de modelos alternativos de assistência não são exclusivos de Sorocaba ou Franco da Rocha. No estado de São Paulo, a estimativa do Censo Psicossocial 2014 é de que seriam necessárias 555 residências terapêuticas para atender a demanda da população paulista. Hoje, elas são 158. As regiões de Araçatuba, Araraquara, Baixada Santista, Barretos, Franca, Presidente Prudente, Registro e Taubaté não apresentam nenhuma residência. Também em São Paulo, foram instalados 416 Centros de Atenção Psicossocial, mas o número de CAPS III – serviço de assistência 24h – chega a 42. No Brasil, o Ministério da Saúde levantou em 2010 a existência de de 570 residências terapêuticas e 1620 CAPS.
O Prof. Dr. Osvaldo Gradella, sentado em sua sala da Unesp de Bauru, no interior paulista, ajeita os óculos no rosto e comenta que os gestores no Brasil ainda não sabem como implantar uma forma de atenção aberta, principalmente por faltar experiência a muitos profissionais. “O modelo que temos é um serviço isolado, sendo que a ideia era ter um serviço em rede – o CAPS I para a entrada, o CAPS II mais especializado e o CAPS III que seria 24h; também era pra se ter uma articulação maior do serviço com os bairros e familiares de pacientes”, comenta. Para o professor, o atendimento acaba se tornando meramente clínico. “Essa é uma das contradições que se tem hoje na implementação: nós saímos dum modelo ‘hospitalocêntrico’ e agora vamos para um modelo ‘capscêntrico’”, ele diz.
O movimento de luta antimanicomial também tem questionado as novas formas de atenção. Segundo Osvaldo, com o fim dos hospitais, os novos modelos começam a carregar em si a sua própria alienação, os seus próprios defeitos. “Tem que se pensar se o CAPS é a solução ou se temos que criar uma nova estratégia de atenção; pensar se ela não se esgotou, se cumpriu seu papel histórico num processo de transformação e se agora a gente precisa criar uma nova estratégia de atenção”, diz o professor.
Ainda assim, Osvaldo comenta que não se pode perder de vista o ataque de setores conservadores, que querem recuperar a internação nos hospitais, reforçando políticas de exclusão – por exemplo, no Congresso. “A própria implementação do discurso neoliberal, do rompimento com uma série de políticas públicas, a falta de investimento na área de saúde e educação; isso de certa forma tem favorecido principalmente a perspectiva manicomial”, afirma Gradella, que tem observado um retrocesso na luta antimanicomial e a ascensão de setores ligados à medicina privatista.
Outra questão que se coloca aos atuais desafios da reforma psiquiátrica brasileira é o tratamento do crack. O professor pontua o crescimento das comunidades terapêuticas de caráter religioso, instituições que têm ocupado o lugar dos hospitais psiquiátricos, repetindo práticas de maus tratos e de punição. O empenho dos governos no combate à droga, segundo Osvaldo, “desviou um pouco a atenção da reforma psiquiátrica, porque o crack virou um assunto de comoção nacional e grande embate entre as forças mais conservadoras, que viram na história das comunidades terapêuticas uma nova forma de ganhar dinheiro”.
Querem os hospitais de volta
A demora na implementação de uma Rede de Atenção Psicossocial eficiente tem sido acompanhada pelo crescimento de setores conservadores na sociedade brasileira. Para os militantes do FLAMAS, esses grupos que defendem a internação em hospitais psiquiátricos seguem uma ideologia de segregação e negação da diferença, do encarceramento de comportamentos que não atendem às expectativas sociais hegemônicas, seguem a crença de que a “loucura” deve ser afastada da sociedade, de que os “loucos” são perigosos, a ideologia do higienismo e da pobreza encarcerada. “O movimento antimanicomial, por sua vez, é orientado pelos valores da autonomia e solidariedade, pela noção de inclusão social, respeito à diferença, pela defesa intransigente dos Direitos Humanos”, eles afirmam.
Em resposta a Marcelo Castro, ministro da Saúde, que afirmou no final de 2015 que a luta antimanicomial era muito ideológica e pouco científica, os integrantes do Fórum de Sorocaba comentam que “a maior prova de que a Luta Antimanicomial é eficaz é a melhora entre as pessoas que são tratadas em liberdade, com equipes multiprofissionais (não apenas médicos), vivendo em sociedade, voltando a produzir arte, conhecimento, trabalho, política etc”. Mencionam também o reconhecimento internacional da ONU, em especial da Organização Mundial de Saúde, pela reforma psiquiátrica no Brasil. Ainda dizem: “essas críticas de ação ideológica da Luta Antimanicomial têm o único propósito de deslegitimá-la, mas são críticas vazias que não se comprovam quando vamos para as experiências concretas”.
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“A ala em que eu morava era um pavilhão com 90 pessoas, com quartos dos dois lados do corredor. Era algo meio prisão”, assim se lembra Wilson Abramusviz “Pitico” do Hospital Vera Cruz. Em entrevista à CartaCapital, comenta que tem a chance de recomeçar sua vida, com mais autonomia e liberdade. Em 2015, foram 95 pacientes que receberam alta da instituição – 16 para morar com familiares, 67 em RTs de Sorocaba e 12 em RTS de outras regiões. A Agência Sorocaba de Notícias, órgão ligado à Prefeitura, publicou que a coordenação de Saúde Mental previa no mínimo mais cem altas no primeiro bimestre do ano seguinte. Os pacientes do Vera Cruz são, no começo de março de 2016, 456. Pitico, já longe do hospital, descreve sua casa, a residência terapêutica em Sorocaba, como “um hotel cinco estrelas”.